segunda-feira, 23 de abril de 2012

Há um Século

I

Allan Kardec, o Codificador da Doutrina Espírita, naquela triste manhã de abril de 1860, estava exausto, acabrunhado.

Fazia frio.

Muito embora a consolidação da Sociedade Espírita de Paris e a promissora venda de livros, escasseava o dinheiro para a obra gigantesca que os Espíritos Superiores lhe haviam colocado nas mãos.

A pressão aumentava...

Missivas sarcásticas avolumavam-se à mesa.

Quando mais desalentado se mostrava, chega a paciente esposa, Madame Rivail – a doce Gaby –, a entregar-lhe certa encomenda, cuidadosamente apresentada.

II

O professor abriu o embrulho, encontrando uma carta singela. E leu:

“Sr. Allan Kardec:

Respeitoso abraço.

Com a minha gratidão, remeto-lhe o livro anexo, bem como a sua história, rogando-lhe, antes de tudo, prosseguir em suas tarefas de esclarecimento da Humanidade, pois tenho fortes razões para isso.

Sou encadernador desde a meninice, trabalhando em grande casa desta capital.

Há cerca de dois anos casei-me com aquela que se revelou minha companheira ideal. Nossa vida corria normalmente e tudo era alegria e esperança, quando, no início deste ano, de modo inesperado, minha Antoniette partiu desta vida, levada por sorrateira moléstia.

Meu desespero foi indescritível e julguei-me condenado ao desamparo extremo.

Sem confiança em Deus, sentindo as necessidades do homem do mundo e vivendo com as dúvidas aflitivas de nosso século, resolvera seguir o caminho de tantos outros, ante a fatalidade...

A prova da separação vencera-me, e eu não passava, agora, de trapo humano.

Faltava ao trabalho e meu chefe, reto e ríspido, ameaçava-me com a dispensa.

Minhas forças fugiam.

Namorava diversas vezes o Sena e acabei planeando o suicídio. “Seria fácil, não sei nadar” – pensava.

Sucediam-se noites de insônia e dias de angústia. Em madrugada fria, quando as preocupações e o desânimo me dominaram mais fortemente, busquei a Ponte Marie.

Olhei em torno, contemplando a corrente... E, ao fixar a mão direita para atirar-me, toquei um objeto algo molhado que se deslocou da amurada, caindo-me aos pés.

Surpreendido, distingui um livro que o orvalho umedecera.

Tomei o volume nas mãos e, procurando a luz mortiça de poste vizinho, pude ler, logo no frontispício, entre irritado e curioso:

“Esta obra salvou-me a vida. Leia-a com atenção e tenha bom proveito. – A. Laurent”.

Estupefato, li a obra – “O Livro dos Espírito” – ao qual acrescentei breve mensagem, volume esse que passo às suas mãos abnegadas, autorizando o distinto amigo a fazer dele o que lhe aprouver”.

Ainda constavam da mensagem agradecimento finais, a assinatura, a data e o endereço do remetente.

O Codificador desempacotou, então, um exemplar de “O Livro dos Espíritos” ricamente encadernado, em cuja capa viu as iniciais do seu pseudônimo e na pagina do frontispício, levemente manchada, leu com emoção não somente a observação a que o missiva se referira, mas também outra, em letra firme:

“Salvou-me também. Deus abençoe as almas que cooperaram em sua publicação. – Joseph Perrier.”

III

Após a leitura da carta providencial, o Professor Rivail experimentou nova luz a banhá-lo por dentro...

Conchegando o livro ao peito, racionava, não mais em termos de desânimo ou sofrimento, mas sim na pauta de radiosa esperança.

Era preciso continuar, desculpar as injúrias, abraçar o sacrifício e desconhecer as pedradas...

Diante de seu espírito turbilhonava o mundo necessitado de renovação e consolo.

Allan Karde levantou-se da velha poltrona, abriu a janela à sua frente, contemplando a via pública, onde passavam operários e mulheres do povo, crianças e velhinho...

O notável obreiro da Grande Revelação respirou a longos haustos, e, antes de retomar a caneta para o serviço costumeiro, levou o lenço aos olhos e limpou uma lágrima...

Do livro:"O Espírito da Verdade", pelo Espírito Hilário Silva, Psicografia de Francisco Cândido Xavier.

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